9º Capítulo
Ningbo, Quinta-feira, 17 de março de 2005
Levantei-me novamente às 6.30. Apetece-me escrever
umas coisas, registar toda esta epopeia por terras de Confúcio e Mao Tsé-Tung.
O afastamento da cultura lusa e da rotina Fontanelense
põe-me fora de pé, sem balizamento cultural e funcional. Nestas alturas, e por
força das horas em introspeção forçada, o sentido da vida assume novas facetas,
fruto da solidão instalada a alguns milhares de quilómetros de casa. O bicho humano é complicado.
Às sete e meia já estava a tomar o
pequeno-almoço no enorme restaurante do Hotel. Novamente excelente. Deliciei-me
com couves temperadas, salsichas, pão, café (água choca acastanhada), sumo de
laranja e mais uma panóplia de coisas que não identifiquei, mas bastante boas.
No sul da China é habitual dizer-se que se come tudo o que tenha quatro pernas,
exceto uma mesa de cozinha. O sul da China é conhecido por ter uma gastronomia
“arrojada” no que toca a comer fauna. Toda a gente já ouviu falar de comer
cães, cobras, lagartos e demais bicheza doméstica ou rastejante, passando por
todo o tipo de insetos. Recentemente, alegadamente, o Covid teve início num
mercado de animais vivos algures na populosa cidade de Wuhan, a escassos mil
quilómetros de Ningbo. Na China, por vezes, comem-se algumas coisas sem saber
exactamente do que se trata. Coração ao largo e siga.
Às 8.30 lá estava a Joanna com o motorista no hall do
hotel. Seguimos viagem rumo a sul, junto à faixa costeira (mar amarelo, creio)
durante mais de duas horas. Percorremos pouco mais de 150 km por estradas
sinuosas, com as habituais passadeiras e motorizadas a atrapalhar. Chegamos a
Xiangshan, uma zona industrial em que a principal actividade é a
produção de roupa, sendo um dos principais epicentros do fabrico de todo o tipo
de roupa na China . Emprega milhões de pessoas oriundas do interior que
perseguem o sonho da evolução na escala social chinesa através dum modesto
emprego numa das milhares de fábricas de roupa desta zona. É uma espécie de
Minho do final do século XX cá em Portugal, elevado a 100. Milhares de fábricas
compõem estes parques industriais. No meio de todo este aparato, lá estavam
algumas fábricas de móveis que fomos visitar.
Surpresa da viagem. Verdadeiramente surpreendente esta
coincidência. Encontrei o fabricante de uma conhecida empresa portuguesa de
importação de móveis, presença regular em feiras da especialidade e com um
excelente naipe de produtos. Nem queria acreditar. No meio de centenas de
milhar de fábricas e fabriquetas de móveis, tremenda coincidência, dar de caras
com o principal fabricante desta empresa na China. Estamos a falar dum
território com, aproximadamente, o tamanho da Europa. O mundo é mesmo muito
pequeno. Na fábrica, e após o proprietário se aperceber que eu
era oriundo de Portugal, foram foi buscar um folheto dessa empresa e
mostrou-mo. Percebi de imediato de que empresa se tratava e descrevi sinais
exteriores do português meu conhecido que lá costumava ir gerando um espanto
geral entre todos. Vivemos numa pequena aldeia global. Após visitarmos a
fábrica, o dono ofereceu o almoço numa marisqueira local que não fica a dever
nada às marisqueiras portuguesas. Muito bom.
Uma das principais dificuldades sentidas é estar
permanentemente à margem da conversa. A língua comum durante o almoço era
chinês, obviamente, bem como em todas as conversas tidas com os locais. A
Joanna Zhu traduzia-me o que lhe parecia relevante. Cheguei à conclusão que a
nossa língua é mesmo algo muito importante. Sem a nossa língua estamos
perdidos. A nossa língua é a nossa casa, é o calor do lar, o envolvimento
social, a âncora existencial que nos agarra a um grupo de pessoas, a um sítio,
a uma cultura de bem estar confortável.
Novamente espectacular. Nem sei bem o que comi, mas
que era muito bom era e não pesou no estômago toda a tarde. De regresso a
Ningbo apanhámos um ferry ao atravessarmos um braço de mar com uma paisagem
mais próxima daquela que era o meu imaginário da China: Pagodes e uma zona mais
verde e rural, com pequenas passagens pedonais entre os campos pintados do
verde natural do arroz em crescimento. Passamos ainda por outro fabricante de
móveis interessantes que nos convidou para jantar, às 5 da tarde. Népia, não havia
fome.
Fiz questão de oferecer o jantar à Joana Zhu em Ningbo.
Reincidimos no tal restaurante dos 200 cozinheiros por volta das 20h00. Outra
vez divinal, lulas salteadas, peixe branco cozido ao vapor, vegetais, vieiras
com um molho espetacular, rebentos de bambú, melancia, tofu chinês e chá verde
a acompanhar. Acabado o repasto, andar precisa-se para “desmoer” a jantarada.
Nesta busca de “bica” aportuguesada, passei por
cinemas e ainda pensei em ir ver um filme. Pensando bem o que é que iria fazer
para um cinema chinês? Ouvir o Harrison Ford com sotaque Contonense? Ou a
Madona a cantar em mandarim?
Veio-me à ideia a minha infância e as sessões de
Domingo à tarde, na União Recreativa e desportiva de Fontanelas e Gouveia,
quando tínhamos “Índios e Cowboys”, “Polícias e Ladrões”, “Príncipes Valentes”
e “Robins dos Bosques”, consoante a matiné trazida por um funcionário do Grémio
da Lavoura de Sintra, cinéfilo e cineasta amador, o Sr. José Maria, que
nos tempos livres passava fitas no lençol do palco para gáudio da miudagem e
pasmo dos adultos. Por vinte e cinco tostões de cinema e dez tostões de
amendoins, passava uma tarde de domingo inesquecível, à laia do “Cinema
Paraíso” de Giuseppe Tornatore, e musicado por Ennio Morricone, sem
margem para dúvidas como um dos melhores fimes que já vi até hoje, senão mesmo
o melhor.
Lá fui todo lampeiro ao bar do hotel, o tal do triplo
abatanado com espuma branca. Desta não me lixam mais, pois café precisa-se.
Desta não me enganam. Vou fazer questão de fiscalizar o tirador de café,
operário barista de meia tigela que só me serve água choca acastanhada, mixórdia
ferrugenta clarinha e deslavada.
Vamos ao café. Frisei: ”expresso coffee, expresso,
small cup, half, half, strong, double!” Resposta: “Stlong, stlong?”
“Yes!!!”, respondi. Mas por via das dúvidas lá fiquei
à espera da porrada, não fosse a rapariga distrair-se. Desta é que foi, pensei.
Bolas. Ao fim de quase uma semana na China e ainda não bebi um café em
condições. Será tão difícil assim servir uma bica cheirosa? Foi buscar a
chávena com cuidado ao balcão por detrás dela, pôs debaixo do bico da máquina e
ligou. “ Yeeeeeeessssssssssss”. É isso mesmo. Boa. Consegui. “Água mole em
pedra dura…” Vale a pena sermos persistentes, teimosos, nunca desistir do que queremos,
exprimirmo-nos com convicção, por vezes um pouco mais alto para as pessoas
perceberem... . Já está. Desligou e pôs-me o café à frente… com leite. Descobri
de imediato o porquê de a chávena estar virada para cima e ela a ter manejado
com cuidado. Bolas. Já tinha lá o leite dentro.
“Thank You”, um riso e um aceno com a cabeça
e estás despachado.
Cama...
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
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