sexta-feira, 22 de março de 2024

9º Capítulo - Quinta-feira, 17 de março de 2005




9º Capítulo

Ningbo, Quinta-feira, 17 de março de 2005 

Levantei-me novamente às 6.30. Apetece-me escrever umas coisas, registar toda esta epopeia por terras de Confúcio e Mao Tsé-Tung.

O afastamento da cultura lusa e da rotina Fontanelense põe-me fora de pé, sem balizamento cultural e funcional. Nestas alturas, e por força das horas em introspeção forçada, o sentido da vida assume novas facetas, fruto da solidão instalada a alguns milhares de quilómetros de casa.  O bicho humano é complicado.

Às sete e meia já estava a tomar o pequeno-almoço no enorme restaurante do Hotel. Novamente excelente. Deliciei-me com couves temperadas, salsichas, pão, café (água choca acastanhada), sumo de laranja e mais uma panóplia de coisas que não identifiquei, mas bastante boas. No sul da China é habitual dizer-se que se come tudo o que tenha quatro pernas, exceto uma mesa de cozinha. O sul da China é conhecido por ter uma gastronomia “arrojada” no que toca a comer fauna. Toda a gente já ouviu falar de comer cães, cobras, lagartos e demais bicheza doméstica ou rastejante, passando por todo o tipo de insetos. Recentemente, alegadamente, o Covid teve início num mercado de animais vivos algures na populosa cidade de Wuhan, a escassos mil quilómetros de Ningbo. Na China, por vezes, comem-se algumas coisas sem saber exactamente do que se trata. Coração ao largo e siga.

Às 8.30 lá estava a Joanna com o motorista no hall do hotel. Seguimos viagem rumo a sul, junto à faixa costeira (mar amarelo, creio) durante mais de duas horas. Percorremos pouco mais de 150 km por estradas sinuosas, com as habituais passadeiras e motorizadas a atrapalhar. Chegamos a Xiangshan, uma zona industrial em que a principal actividade é a produção de roupa, sendo um dos principais epicentros do fabrico de todo o tipo de roupa na China . Emprega milhões de pessoas oriundas do interior que perseguem o sonho da evolução na escala social chinesa através dum modesto emprego numa das milhares de fábricas de roupa desta zona. É uma espécie de Minho do final do século XX cá em Portugal, elevado a 100. Milhares de fábricas compõem estes parques industriais. No meio de todo este aparato, lá estavam algumas fábricas de móveis que fomos visitar.

Surpresa da viagem. Verdadeiramente surpreendente esta coincidência. Encontrei o fabricante de uma conhecida empresa portuguesa de importação de móveis, presença regular em feiras da especialidade e com um excelente naipe de produtos. Nem queria acreditar. No meio de centenas de milhar de fábricas e fabriquetas de móveis, tremenda coincidência, dar de caras com o principal fabricante desta empresa na China. Estamos a falar dum território com, aproximadamente, o tamanho da Europa. O mundo é mesmo muito pequeno. Na fábrica, e após o proprietário se aperceber que eu era oriundo de Portugal, foram foi buscar um folheto dessa empresa e mostrou-mo. Percebi de imediato de que empresa se tratava e descrevi sinais exteriores do português meu conhecido que lá costumava ir gerando um espanto geral entre todos. Vivemos numa pequena aldeia global. Após visitarmos a fábrica, o dono ofereceu o almoço numa marisqueira local que não fica a dever nada às marisqueiras portuguesas. Muito bom.

Uma das principais dificuldades sentidas é estar permanentemente à margem da conversa. A língua comum durante o almoço era chinês, obviamente, bem como em todas as conversas tidas com os locais. A Joanna Zhu traduzia-me o que lhe parecia relevante. Cheguei à conclusão que a nossa língua é mesmo algo muito importante. Sem a nossa língua estamos perdidos. A nossa língua é a nossa casa, é o calor do lar, o envolvimento social, a âncora existencial que nos agarra a um grupo de pessoas, a um sítio, a uma cultura de bem estar confortável.

Novamente espectacular. Nem sei bem o que comi, mas que era muito bom era e não pesou no estômago toda a tarde. De regresso a Ningbo apanhámos um ferry ao atravessarmos um braço de mar com uma paisagem mais próxima daquela que era o meu imaginário da China: Pagodes e uma zona mais verde e rural, com pequenas passagens pedonais entre os campos pintados do verde natural do arroz em crescimento. Passamos ainda por outro fabricante de móveis interessantes que nos convidou para jantar, às 5 da tarde. Népia, não havia fome.

Fiz questão de oferecer o jantar à Joana Zhu em Ningbo. Reincidimos no tal restaurante dos 200 cozinheiros por volta das 20h00. Outra vez divinal, lulas salteadas, peixe branco cozido ao vapor, vegetais, vieiras com um molho espetacular, rebentos de bambú, melancia, tofu chinês e chá verde a acompanhar. Acabado o repasto, andar precisa-se para “desmoer” a jantarada.

Nesta busca de “bica” aportuguesada, passei por cinemas e ainda pensei em ir ver um filme. Pensando bem o que é que iria fazer para um cinema chinês? Ouvir o Harrison Ford com sotaque Contonense? Ou a Madona a cantar em mandarim?

Veio-me à ideia a minha infância e as sessões de Domingo à tarde, na União Recreativa e desportiva de Fontanelas e Gouveia, quando tínhamos “Índios e Cowboys”, “Polícias e Ladrões”, “Príncipes Valentes” e “Robins dos Bosques”, consoante a matiné trazida por um funcionário do Grémio da Lavoura de Sintra, cinéfilo e cineasta amador, o Sr. José Maria, que nos tempos livres passava fitas no lençol do palco para gáudio da miudagem e pasmo dos adultos. Por vinte e cinco tostões de cinema e dez tostões de amendoins, passava uma tarde de domingo inesquecível, à laia do “Cinema Paraíso” de Giuseppe Tornatore, e musicado por Ennio Morricone, sem margem para dúvidas como um dos melhores fimes que já vi até hoje, senão mesmo o melhor. 

Lá fui todo lampeiro ao bar do hotel, o tal do triplo abatanado com espuma branca. Desta não me lixam mais, pois café precisa-se. Desta não me enganam. Vou fazer questão de fiscalizar o tirador de café, operário barista de meia tigela que só me serve água choca acastanhada, mixórdia ferrugenta clarinha e deslavada.

Vamos ao café. Frisei: ”expresso coffee, expresso, small cup, half, half, strong, double!”  Resposta: “Stlong, stlong?”

“Yes!!!”, respondi. Mas por via das dúvidas lá fiquei à espera da porrada, não fosse a rapariga distrair-se. Desta é que foi, pensei. Bolas. Ao fim de quase uma semana na China e ainda não bebi um café em condições. Será tão difícil assim servir uma bica cheirosa? Foi buscar a chávena com cuidado ao balcão por detrás dela, pôs debaixo do bico da máquina e ligou. “ Yeeeeeeessssssssssss”. É isso mesmo. Boa. Consegui. “Água mole em pedra dura…” Vale a pena sermos persistentes, teimosos, nunca desistir do que queremos, exprimirmo-nos com convicção, por vezes um pouco mais alto para as pessoas perceberem... . Já está. Desligou e pôs-me o café à frente… com leite. Descobri de imediato o porquê de a chávena estar virada para cima e ela a ter manejado com cuidado. Bolas. Já tinha lá o leite dentro.

“Thank You”, um riso e um aceno com a cabeça e estás despachado.

Cama...   

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz



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