sexta-feira, 29 de março de 2024

16º Capítulo - quarta-feira, 23 de março de 2005

 

16º Capítulo 

Shenzhen e Hong-Kong, quarta-feira, 23 de março de 2005

Basta de China. Nós somos seres “eminentemente sociais” (Lembro-me destes palavrões dos meus tempos de liceu de Sintra, onde ainda tentei argumentar que queria ser eremita para me baldar à matéria de português, sem sucesso), precisamos de nos expressar, comunicar, trocar impressões, pedir opiniões, asneirar com alguém, ralhar com os filhos, ouvir ralhar da mulher… . Passadas quase duas semanas desde o início da minha epopeia chinesa, começa a haver algum desgaste emocional. Quero regressar. Tenho voo marcado para Sábado, 26 de Março, e não vejo a hora de pôr pés ao caminho. A feira de Shenzhen está vista e quero ir para Hong-Kong.

Levanto-me cedo e vou fechar as contas com o Master Club. Só irei fazer o check–in num hotel em Hong-Kong após o almoço. Deixo as malas no hotel e aproveito para ir comer qualquer coisa à rua às “tascas” pejadas de panelas de bambu a deitar vapor por todos os lados. Vou aos “pãezinhos” cozidos no vapor, na rua. Verdadeiramente estranho: Não há pão para consumirmos, como nós o conhecemos, nas ruas da China. Existe uma panóplia de pastéis e pastelinhos, bolos e bolinhos, mas fatias de pão ou papos-secos, nunca encontrei. Nas panelas de vapor existe uma espécie de pão cozido na hora ao vapor, mas que mais parece uma massa mal cozida, balofa e recheada com qualquer legume ou carne. Ainda não sei bem o que é que aquela coisa tem dentro. Cheira tudo ao mesmo, aquele cheiro esquisito que está em todo o lado, enjoativo, intenso, predominante. Uns anos mais tarde, em 2008, ao passear em Londres, bem no meio das ruelas de Chinatown, lá veio a mesma mistela, o mesmo odor inconfundível de uma mistura típica dos odores chineses, retintos, marcantes, intensos. Posteriormente já senti um “aroma” parecido no supermercado Chen, na rua da Palma, onde vou com frequência comprar algumas mercearias chinesas. Após deixar de fumar, a 4 de fevereiro de 2004, fiquei com um faro tipo cão de caça, com uma sensibilidade olfativa acima do normal.

Tinha estado na zona central de Shenzhen e visto um centro comercial brutal, que fervilhava de atividade. Era uma espécie de centro grossista para cabeleireiros, onde também se vendia roupa, relógios, sapatos, tudo contrafeito. Decidi, para passar o tempo, ir investigar in loco a abundante oferta de tão exclusiva mercadoria. Entre montanhas de fardos empilhados em corredores, sacos e mais sacos, gente e mais gente, vou tomando consciência do mundo da moda contrafeita preparadíssima para embarcar para a boutique alcofa da feira da Adroana, Relógio ou Carcavelos. À data ainda usava relógio de pulso, logo me caiu a vista numa bancada de relógios. O chinês do estaminé, pressentindo dinheiro fresco deste turista ocidental, vai de sacar de duas malas refundidas debaixo da bancada e “tcharam”: Rolex, Tissot, Adidas, Omega, etc, tudo da mais requintada contrafação chinesa. Quem visse aquela “mercadoria” numa loja do Colombo, seria certamente enganado sem pestanejar. Já vos aconteceu estarem a comprar algo que sabem que é treta mas é barato, tem bom aspeto, enche o olho, está aqui à mão, enfim, o relógio que tinha comprado dias antes na estação de comboios em Huizhou atrasava-se uma hora a cada duas. Decisão tomada. Vão três. Nem é preciso embrulhar. Três dias depois em Lisboa ainda pensei que o pessoal da alfândega embirrasse comigo por trazer relógios. Afinal mandaram-me para revista porque era comum a compra de portáteis baratos, que estavam sujeitos a direitos alfandegários. O meu foi verificado, viram os selos portugueses e passei sem problema.

Após tão exclusiva mercadoria comprada, decidi voltar ao Master Club, pegar na trouxa e zarpar para Hong-Kong. Taxi, estação de comboios de Shenzhen, fronteira. Um controlo muito rigoroso de passaporte, para sair da China Continental. Verificação de toda a documentação possível e imaginária. Já do lado de Hong-Kong, foi o expoente máximo da análise à lupa. Devia ter cara de quem era portador do vírus da gripe aviária A, B, C, D, e demais letras. Examinado ao pormenor por uma equipa altamente apetrechada, batas, máscaras, análise na hora ao pingo no nariz, globos oculares, apalpar o pescoço, etc. Lá me deram luz verde para entrar na China “Ocidental”. Senti-me um privilegiado face à grande maioria dos chineses do outro lado que não tinham a possibilidade de sair. Um país, dois sistemas.

Ao sair, lembrei-me do que me veio à cabeça quando cheguei alguns dias antes, rodeado de chineses a convidarem-me para transportar as malas, a oferecerem táxis, a olharem curiosos, a dizerem não sei o quê, a tentarem fazer dinheiro com qualquer coisa. Acho que senti algum medo, alguma apreensão. “Onde me vim meter”, pensei naquele momento enquanto arrastava a mala da roupa e a pasta do computador.       

Comboio para o centro de Hong Kong e procurar sítio para pernoitar. Tinha registado dois ou três hotéis em Hong-Kong, dentro do meu orçamento previsto. À saída da estação meti-me num táxi e rumei a um hotel com um nome “very british do qual não me lembro o nome”. Caduco, gasto, snob, colonial, mas suficientemente bom para me estender, ver e ouvir televisão em …português!!! Yesssssssss. Tinham inaugurado as transmissões da RTP internacional para a Ásia havia poucos dias. O Toy a cantar não me lembro bem o quê, a Serenella Andrade com uma parvoíce qualquer, enfim, foi música e conversa do melhor para os meus ouvidos. Bolas, estava mesmo a precisar dum banho de portugalidade.

Ás três a tarde, a pensar em sair para beber um café num “Starbucks”, a ver a RTP Internacional, deitado na cama do “Very British hotel que não me lembro o nome”, snob, c a d u c o, c  o  l  o  n  i  a  l, … 

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz……

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