16º Capítulo
Shenzhen e Hong-Kong, quarta-feira, 23 de março de 2005
Basta de China. Nós somos seres “eminentemente
sociais” (Lembro-me destes palavrões dos meus tempos de liceu de Sintra, onde
ainda tentei argumentar que queria ser eremita para me baldar à matéria de
português, sem sucesso), precisamos de nos expressar, comunicar, trocar
impressões, pedir opiniões, asneirar com alguém, ralhar com os filhos, ouvir
ralhar da mulher… . Passadas quase duas semanas desde o início da minha epopeia
chinesa, começa a haver algum desgaste emocional. Quero regressar. Tenho voo
marcado para Sábado, 26 de Março, e não vejo a hora de pôr pés ao caminho. A
feira de Shenzhen está vista e quero ir para Hong-Kong.
Levanto-me cedo e vou fechar as contas
com o Master Club. Só irei fazer o check–in num hotel em Hong-Kong após o
almoço. Deixo as malas no hotel e aproveito para ir comer qualquer coisa à rua
às “tascas” pejadas de panelas de bambu a deitar vapor por todos os lados. Vou
aos “pãezinhos” cozidos no vapor, na rua. Verdadeiramente estranho: Não há pão
para consumirmos, como nós o conhecemos, nas ruas da China. Existe uma panóplia
de pastéis e pastelinhos, bolos e bolinhos, mas fatias de pão ou papos-secos,
nunca encontrei. Nas panelas de vapor existe uma espécie de pão cozido na hora
ao vapor, mas que mais parece uma massa mal cozida, balofa e recheada com
qualquer legume ou carne. Ainda não sei bem o que é que aquela coisa tem
dentro. Cheira tudo ao mesmo, aquele cheiro esquisito que está em todo o lado,
enjoativo, intenso, predominante. Uns anos mais tarde, em 2008, ao passear em
Londres, bem no meio das ruelas de Chinatown, lá veio a mesma mistela, o mesmo
odor inconfundível de uma mistura típica dos odores chineses, retintos,
marcantes, intensos. Posteriormente já senti um “aroma” parecido no
supermercado Chen, na rua da Palma, onde vou com frequência comprar algumas
mercearias chinesas. Após deixar de fumar, a 4 de fevereiro de 2004, fiquei com
um faro tipo cão de caça, com uma sensibilidade olfativa acima do normal.
Tinha estado na zona central de
Shenzhen e visto um centro comercial brutal, que fervilhava de atividade. Era
uma espécie de centro grossista para cabeleireiros, onde também se vendia
roupa, relógios, sapatos, tudo contrafeito. Decidi, para passar o tempo, ir
investigar in loco a abundante oferta
de tão exclusiva mercadoria. Entre montanhas de fardos empilhados em corredores,
sacos e mais sacos, gente e mais gente, vou tomando consciência do mundo da
moda contrafeita preparadíssima para embarcar para a boutique alcofa da feira
da Adroana, Relógio ou Carcavelos. À data ainda usava relógio de pulso, logo me
caiu a vista numa bancada de relógios. O chinês do estaminé, pressentindo
dinheiro fresco deste turista ocidental, vai de sacar de duas malas refundidas
debaixo da bancada e “tcharam”: Rolex, Tissot, Adidas, Omega, etc, tudo da mais
requintada contrafação chinesa. Quem visse aquela “mercadoria” numa loja do
Colombo, seria certamente enganado sem pestanejar. Já vos aconteceu estarem a
comprar algo que sabem que é treta mas é barato, tem bom aspeto, enche o olho,
está aqui à mão, enfim, o relógio que tinha comprado dias antes na estação de
comboios em Huizhou atrasava-se uma hora a cada duas. Decisão tomada. Vão três.
Nem é preciso embrulhar. Três dias depois em Lisboa ainda pensei que o pessoal
da alfândega embirrasse comigo por trazer relógios. Afinal mandaram-me para
revista porque era comum a compra de portáteis baratos, que estavam sujeitos a
direitos alfandegários. O meu foi verificado, viram os selos portugueses e
passei sem problema.
Após tão exclusiva mercadoria comprada,
decidi voltar ao Master Club, pegar na trouxa e zarpar para Hong-Kong. Taxi,
estação de comboios de Shenzhen, fronteira. Um controlo muito rigoroso de
passaporte, para sair da China Continental. Verificação de toda a documentação
possível e imaginária. Já do lado de Hong-Kong, foi o expoente máximo da
análise à lupa. Devia ter cara de quem era portador do vírus da gripe aviária
A, B, C, D, e demais letras. Examinado ao pormenor por uma equipa altamente
apetrechada, batas, máscaras, análise na hora ao pingo no nariz, globos
oculares, apalpar o pescoço, etc. Lá me deram luz verde para entrar na China “Ocidental”.
Senti-me um privilegiado face à grande maioria dos chineses do outro lado que
não tinham a possibilidade de sair. Um país, dois sistemas.
Ao sair, lembrei-me do que me veio à
cabeça quando cheguei alguns dias antes, rodeado de chineses a convidarem-me
para transportar as malas, a oferecerem táxis, a olharem curiosos, a dizerem
não sei o quê, a tentarem fazer dinheiro com qualquer coisa. Acho que senti
algum medo, alguma apreensão. “Onde me vim meter”, pensei naquele momento
enquanto arrastava a mala da roupa e a pasta do computador.
Comboio para o centro de Hong Kong e
procurar sítio para pernoitar. Tinha registado dois ou três hotéis em Hong-Kong,
dentro do meu orçamento previsto. À saída da estação meti-me num táxi e rumei a
um hotel com um nome “very british do qual não me lembro o nome”. Caduco,
gasto, snob, colonial, mas suficientemente bom para me estender, ver e ouvir
televisão em …português!!! Yesssssssss. Tinham inaugurado as transmissões da
RTP internacional para a Ásia havia poucos dias. O Toy a cantar não me lembro
bem o quê, a Serenella Andrade com uma parvoíce qualquer, enfim, foi música e
conversa do melhor para os meus ouvidos. Bolas, estava mesmo a precisar dum
banho de portugalidade.
Ás três a tarde, a pensar em sair para
beber um café num “Starbucks”, a ver a RTP Internacional, deitado na cama do
“Very British hotel que não me lembro o nome”, snob, c a d u c o, c o
l o n
i a l, …
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz……
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