sexta-feira, 29 de março de 2024

19º Capítulo - sexta-feira, 25 de março de 2005

 


19º Capítulo (e último)

Hong-Kong, Amesterdão, Lisboa e Fontanelas -  sexta-feira, 25 de março de 2005 

É dia de regressar à Europa.

Estou saturado do Oriente e das suas particularidades. Já apetece entrar na rotina e normalidade da vida Fontanelense. A nortada de março, o reboliço marítimo, a chuva na festa da Páscoa e a comida saloia quente, tudo me está a parecer idealmente confortável e altamente desejável.

A China é populosa, barulhenta, lotada, confusa, competitiva e saturadora. Tudo mexe a um ritmo frenético como se do último dia da vida se tratasse. Para este saloio nascido e criado na aldeia de Fontanelas isto é reboliço a mais.

Tinha voo marcado para as 10h00 da manhã, pelo que era imperioso levantar cedo e chegar ao aeroporto de Hong-Kong por volta das 8h00. Tarefa complicada se considerarmos o trânsito caótico de Hong-Kong. Fiz o check-out às 6h45, não sem antes me informar que transportes teria que apanhar. Táxi e comboio. Por volta das 8h00 já estava a fazer o check-in do voo no Boeing 747 da KLM com destino a Schiphol, Amesterdão. 

Com os níveis de cafeína no “red line” ainda procurei no aeroporto algum embaixador desta droga por terras do oriente. Encontrei!!! Starbucks. De imediato, e quase em “delirium tremens cafeínico” pedi um expresso, ao qual a menina da caixa me exigiu, de imediato, 38 HKD (Hong Kong Dollar). Pagaria nem que fosse 100 por um café expresso. A menina da caixa, como já tinha acontecido na véspera no outro Starbucks, pediu o café à colega em chinês, a colega perguntou mais qualquer coisa em chinês, a moça da caixa respondeu em chinês e eu a ver navios e chávena para cá, chávena para lá. Resultado: Um cariocazito acastanhado que nem sabia a café. Desisto. Na China não há café!!!

12 ou 13 horas de voo depois, por volta das 3 da tarde (ganhei 8 horas em fuso horário), estaria a aterrar na Europa, onde um airbus da TAP me levaria de regresso a Lisboa. Até que enfim, Portugal. A ponte sobre o Tejo, ou 25 de abril, encarregou-se de me humedecer os olhos. Logo de seguida encarei o temor da trepidante aterragem como um simples balançar dum berço embalado, uma cama quente, um mergulho morno na Praia da Aguda. Que viagem!!!

Sozinho durante quase quinze dias a palmilhar a China, cidade após cidade, fábrica após fábrica, feira após feira, hotel após hotel, finalmente de regresso a casa. Curioso que o que mais me custou não foi a ausência de comunicação, pois acabei por desenferrujar o inglês onde foi possível. Foi não comunicar em português ou com alguém que partilhasse comigo valores, ideias, opiniões. A dificuldade na comunicação é uma constante e provoca afastamento, isolamento. A cultura chinesa, nas grandes cidades por onde andei, assemelha-se ao comportamento de qualquer metrópole onde o individualismo e a competição perduram e florescem. Hong-Kong, Shenzhen, Ningbo, Cixi, Guangzhou, Huizhou são cidades onde as pessoas, na sua maioria, sobrevivem, procurando desesperadamente o “El Dorado” sonhado através dum emprego mal remunerado, a viverem em cubículos pouco maiores que a cama onde se deitam e com uma casa de banho comum para 20 pessoas.

Depois de ver e vivenciar estas realidades, chegado a Fontanelas e sentir o cheiro da minha terra, circular na minha terra e retomar os meus hábitos diários na minha terra, com segurança, abrigo, conforto e restantes mordomias, fez de mim um dos seres humanos mais contentes ao cimo da terra naquele momento. Fiquei eufórico.

Para encerrar com “cerejinha no topo do bolo”, fui, nessa mesma noite e com toda a parcimónia, usufruir dum cheiroso, saboroso, aveludado, com acastanhado creme, numa chávena aquecida previamente, café expresso ao Camacho’s Café Bar, repondo, ao fim de quase duas semanas, os tão desejados níveis de cafeína perigosamente em défice.

Nunca um simples café me tinha sabido tão bem.

Ao beber aquele simples café expresso senti, naquele preciso momento que, finalmente, tinha chegado a casa.

 

Boas viagens.

18º Capítulo - Quinta-feira, 24 de março de 2005

 


18º Capítulo

Hong-Kong, Quinta-feira, 24 de março de 2005

Quero ir a Macau. Para além de ouvir falar muito deste território, as ligações à cultura lusa deixam-me nostálgico e saudosista. A 10.000 quilómetros de casa todas as semelhanças com a minha chaminé são bem-vindas. A esta distância de casa seria bom passear na Rua Cidade de Sintra, freguesia da Sé, em Macau.

Está-me a passar a “pica” de levantar cedo, até porque tenho a companhia do Fernando Mendes, da Serenela Andrade, do José Rodrigues dos Santos e restante staff da RTP Internacional. Após um “very british breakfast” no hotel “very british que não me lembro o nome”, pergunto na recepção como apanhar o ferry para Macau. Por via das dúvidas e para não andar com um porta-documentos muito volumoso ao pescoço por dentro da roupa, opto por não andar com o Passaporte. Deixo-o no pequeno cofre do quarto.

Por questões de segurança levei dois cartões multibanco de débito, de duas contas distintas, caso um deles falhasse poder-me-ia socorrer do outro. Com medo de possíveis assaltos, deixava um deles no quarto e andava com o outro. Fazia levantamentos regulares para pagamento das despesas de hotel e demais necessidades com o cartão que andava comigo. Em Hong Kong tinha cofre. Nos outros hotéis da China continental não. Tive que arranjar um esconderijo seguro e difícil de encontrar (no meu entender). No primeiro hotel da China, o Master Club em Shenzhen,  dei volta ao alojamento e surgiam-me sempre os esconderijos típicos onde todos os possíveis ladrões iriam ver em primeiro lugar. Estava na fase do choque inicial da entrada na China. Tudo me parecia medonho. Então descobri que as cortinas tinham bainha suficientemente alta para caber lá o cartão, já que deixá-lo na pasta ou mala poderia ser menos bom em caso de assalto. Foi só descoser um pouco e já está. Teria que ser um ladrão com muita imaginação para dar com o cartão. Seria um embrulho tremendo se não conseguisse levantar dinheiro nos ATM’s locais.

À data existiam, e julgo que ainda existem, uns eléctricos semelhantes aos nossos eléctricos lisboetas, mas na linha dos típicos autocarros londrinos de dois andares. Nas calmas, fui andando até Henessy Road e aí apanhar um desses eléctricos que fosse para os lados do porto de embarque do “ferry” para Macau. Assim foi. Depois de algum tempo em viagem e filas de espera para adquirir o bilhete, é-me exigido o passaporte. Não deu para embarcar. Também poupei 50€, que seria o custo do bilhete. Decidi inspeccionar a zona do cais dos “ferrys” e eis que, surpresa das surpresas, dou de caras com uma versão própria da bandeira portuguesa. (foto) O consolo encontrar um elo comum a milhões de pessoas onde me incluo, a 10.000km de casa onde ver esta bandeira dá-nos a sensação pertencer a algo, de ter uma origem, uma cultura, algo em comum com muitas outras pessoas. A 10.000Km de casa, vendo esta bandeira, deixamos de estar sós. Como com facilidade me assomam as humidades aos olhos, tive aí e nessa hora mais uma oportunidade que não desperdicei. De regresso à zona do hotel, decidi fazer o percurso a pé, já que tempo é coisa que tenho em abundância. Nessa zona específica, tentei encontrar forma de caminhar nos passeios, sem sucesso. Verdadeiramente estranho. Não existem passeios. Todos os espaços destinados a peões encontram-se acima da rua em plataformas cobertas exclusivamente para tráfego pedonal. Isto durante largos quilómetros dentro de Hong Kong. De surpresa em surpresa, lá fui regressando. Meti por vielas e ruas numa zona mais antiga. É fácil vermos uma camioneta a descarregar pranchas para uma carpintaria no 5º andar de um prédio. A coisa mais normal do mundo é fábricas e fabriquetas ocuparem um prédio de 30 andares. Hong Kong tem um crescimento na vertical. Verdadeiramente estranho. Os andaimes dos prédios em construção são em bambu. Sim, a cana. Bambu. Imaginem um emaranhado de canas de bambu com 30 ou 40 andares, atados com cordéis de sisal e sabe-se lá mais o quê. Os trabalhadores movimentam-se nestas plataformas de bambu como se estivesse no solo, com uma agilidade de fazer inveja a um macaco.

Vou tentar novamente o café no Starbucks, perto do hotel. Ainda não repus os meus níveis de cafeína, pelo que tudo o que seja preto acastanhado, com ou sem espuma, com ou sem aroma, em porcelana, papel ou plástico, cheio ou meio cheio, marcha. A funcionária já não era a mesma. Viam-se alguns ocidentais a beber café com leite nos típicos copos altos com tampa curva de plástico. Grupos de adolescentes a cobiçarem os bolos. “Habitués” na leitura da hora de almoço. Turistas tresmalhados como eu. Que caldeirão. Enfim, peito cheio e … “One expresso, half cup, single, very hot” disse eu á menina que me atendeu no pré-pagamento. Gritou 咖啡杯玛雅,非常热,不加奶para uma outra que estava na máquina de café e eu, atentíssimo, a seguir todos os movimentos como se de alguma coisa valesse, fiscalizava as operações que nem um capataz.      

-“这里它是Disse a moça.

- Hammmm!!!??? respondi eu.

-  要牛奶perguntou ela.

 Fiz uma cara de interrogado e encolhi os ombros. Sem me dar tempo para pestanejar e com uma destreza brutal, vai de atestar com leite. Aaaaaaiiiiiiiiiiiii!!!!!!! Já está. Mais um balde. Peguei no café e pus-me a andar para a mesa a resmungar comigo próprio. Ainda não foi desta. Vou dormir a sesta.

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17º Capítulo - quarta-feira, 23 de março de 2005 (tarde e noite)

 


17º Capítulo 

Hong-Kong, quarta-feira, 23 de março de 2005 (tarde e noite)

Acordei estremunhado com o Fernando Mendes aos berros, agradecendo a oferta de um par de galhardetes, 3 garrafas de vinho tinto e 2 salpicões, oferta da Junta de Freguesia de Vinhais, tudo trazido gentilmente pela D. Rosa, concorrente do Preço Certo daquela tarde.

Que fome.

Após um rápido duche, lá ia ouvindo 25, 30, 28, mais, mais, mais, tá bom, tá bom, menos, Hã??? Quanto? menos? enquanto vestia uma roupa prática adequada para caminhar à vontade. Vou andar por Hong-Kong. Pedi um mapa na receção do hotel e rua que aí vai ele. Comida precisa-se!

Na China come-se muito bem. Desde essa viagem em 2005 que desenvolvi alguma curiosidade pela cozinha chinesa, tal é a sua variedade, qualidade e versatilidade. Tudo o que se possa comer na China (pelo menos nos sítios por onde andei), pouco ou nada tem a ver com as ementas dos restaurantes chineses implantados na Europa. É certo que a China tem quase o tamanho do continente europeu e cada zona tem a sua própria gastronomia. Julgo que na Europa o processo de confeção da comida está altamente desenvolvido para rentabilizar e despachar, associado ao facto de terem procurado ir de encontro ao palato europeu para mais facilmente entrarem no mercado e rentabilizarem. Associado aos restaurantes asiáticos na Europa está também a utilização de produtos que dão mais intensidade ao sabor da comida, nomeadamente o E620, Glutamato Monosódico, mais conhecido pelo Sal Chinês. Nada notei lá. Por aquilo que me apercebi, na China dão especial atenção aos produtos naturais, no sentido de estar vivo até ir para o Wok ou para a panela. O peixe está vivo nos alguidares pejados de mangueiras a oxigenar, até ser “pescado” com um camaroeiro e morto ali, com um cutelo típico dos cozinheiros chineses (aqueles cutelos que se viam nos filmes de Kung Fu em que o cozinheiro chinês, a gritar que nem um desalmado, atacava o Bruce Lee). Os produtos são fresquíssimos, saborosos, estão tenros, têm molho natural e tudo confecionado à nossa frente em tempo record com uma energia e sabedoria invejáveis. Bestial.

Desde 2005 que passei a utilizar diariamente os pauzinhos chineses nas minhas refeições. Utilizo frequentemente o Wok e uma panóplia de ingredientes asiáticos, não necessariamente e só chineses. Uma das formas mais características de cozinhar qualquer alimento é com uma simples e prática panela de vapor em bambú de dois níveis, colocada dentro do Wok ou de um tacho largo com dois dedos de altura de água. O vapor da água a ferver coze os alimentos de uma forma pouco intrusiva e mantém a sua forma e textura, para além de não se perderem sais minerais e outras propriedades importantes. Existe uma versão de cozedura a vapor mais recente bastante eficaz. Uma rede em forma de pétala que se fecha ou abre consoante o tamanho da panela ou tacho.

Chá verde. Ao chegar à mesa do restaurante a meio da tarde, vai de “atestar o balde”. É a primeira coisa que o funcionário faz antes de tomar nota do pedido. Nessa refeição em Hong Kong nem sei o que comi, já que apontei para a mistela que o cozinheiro manipulava, baseado num sugestivo monte de noodles regados com um cremoso molho acastanhado, aqui e ali salpicado com umas coisinhas verdes. Foi um almoço ajantarado, como a maior parte das refeições. Come-se a toda a hora, de qualquer forma e em qualquer circunstância. Os restaurantes/tascas/casas de comida estão permanentemente abertos. Passei grande parte do tempo a tentar digerir depressa para ir outra vez provar mais outro qualquer petisco cobiçado pela gula irresistível. Poucas vezes comi em restaurantes propriamente ditos com toalha e guardanapo de pano. Na maior parte das vezes alinhava mais nas tascas tipo “bifana na montra”, onde metade da refeição era logo ali devorada com os olhos. Para ajudar na digestão, caminhei até mais não. Entretanto anoiteceu e a noite em Hong-Kong é luminosa, cheia de neons coloridos, agitada, barulhenta, cosmopolita.

Havia alguns dias que estava com um défice de cafeína acentuado, tendo atingido um nível preocupante. Uma acção imediata impunha-se. Hong Kong tem que ter um antro do café. Decidi procurar e tornar a procurar. Calcorreei metade de Hong Kong, passei por espremedores de cana de açúcar, bancas de ananás fresco, vendedores de coco aos bocados, roulottes de sumos de tudo e mais alguma coisa, tascas e mais tascas, lojas de tudo quanto é marca, já via luxo e mais luxo até à exaustão e café… nada!!! Já pela noite dentro e quase a desistir pelo cansaço, eis que junto ao hotel numa praça com um centro comercial, descobri uma loja do principal embaixador da globalização cafeínica: STARBUCKS!!! Uma autentica meca do principal distribuidor da cafeína no mundo. É desta que vou beber um expresso coffee, half cup, com ou sem espuma, tanto faz, com boas maneiras ou sem boas maneiras, custe 1 ou custe 10, cafeína precisa-se. Em Hong-Kong a língua falada era e continuou a ser o cantonês, embora o inglês fosse falado por uma grande parte da população. É fácil fazermo-nos entender e sermos entendidos em inglês. Tal não aconteceu com a zelosa funcionária do Starbucks, algures em Hong Kong. Estava condenado. Um cariocazito com uma espuma amarelada, escanzelado, agua-pé de café, restos da espremedura gasta de uma borra mal moída de meia dúzia de grãos de café. Bolas. Que beberragem aquela! Ainda não foi desta. Com o hotel a 200 metros, cansado dos quilómetros a pé, com saudades do Fernando Mendes e da Serenella Andrade, dei entrada no 4º andar do “very british hotel que não me lembro o nome”, snob, coçado, colonial… . Acho que era o José Rodrigues dos Santos que estava de serviço a botar faladura sobre o fim-de-semana prolongado, já que Sexta-Feira era Santa, nas vésperas da Páscoa, mais isto e mais aquilo…

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16º Capítulo - quarta-feira, 23 de março de 2005

 

16º Capítulo 

Shenzhen e Hong-Kong, quarta-feira, 23 de março de 2005

Basta de China. Nós somos seres “eminentemente sociais” (Lembro-me destes palavrões dos meus tempos de liceu de Sintra, onde ainda tentei argumentar que queria ser eremita para me baldar à matéria de português, sem sucesso), precisamos de nos expressar, comunicar, trocar impressões, pedir opiniões, asneirar com alguém, ralhar com os filhos, ouvir ralhar da mulher… . Passadas quase duas semanas desde o início da minha epopeia chinesa, começa a haver algum desgaste emocional. Quero regressar. Tenho voo marcado para Sábado, 26 de Março, e não vejo a hora de pôr pés ao caminho. A feira de Shenzhen está vista e quero ir para Hong-Kong.

Levanto-me cedo e vou fechar as contas com o Master Club. Só irei fazer o check–in num hotel em Hong-Kong após o almoço. Deixo as malas no hotel e aproveito para ir comer qualquer coisa à rua às “tascas” pejadas de panelas de bambu a deitar vapor por todos os lados. Vou aos “pãezinhos” cozidos no vapor, na rua. Verdadeiramente estranho: Não há pão para consumirmos, como nós o conhecemos, nas ruas da China. Existe uma panóplia de pastéis e pastelinhos, bolos e bolinhos, mas fatias de pão ou papos-secos, nunca encontrei. Nas panelas de vapor existe uma espécie de pão cozido na hora ao vapor, mas que mais parece uma massa mal cozida, balofa e recheada com qualquer legume ou carne. Ainda não sei bem o que é que aquela coisa tem dentro. Cheira tudo ao mesmo, aquele cheiro esquisito que está em todo o lado, enjoativo, intenso, predominante. Uns anos mais tarde, em 2008, ao passear em Londres, bem no meio das ruelas de Chinatown, lá veio a mesma mistela, o mesmo odor inconfundível de uma mistura típica dos odores chineses, retintos, marcantes, intensos. Posteriormente já senti um “aroma” parecido no supermercado Chen, na rua da Palma, onde vou com frequência comprar algumas mercearias chinesas. Após deixar de fumar, a 4 de fevereiro de 2004, fiquei com um faro tipo cão de caça, com uma sensibilidade olfativa acima do normal.

Tinha estado na zona central de Shenzhen e visto um centro comercial brutal, que fervilhava de atividade. Era uma espécie de centro grossista para cabeleireiros, onde também se vendia roupa, relógios, sapatos, tudo contrafeito. Decidi, para passar o tempo, ir investigar in loco a abundante oferta de tão exclusiva mercadoria. Entre montanhas de fardos empilhados em corredores, sacos e mais sacos, gente e mais gente, vou tomando consciência do mundo da moda contrafeita preparadíssima para embarcar para a boutique alcofa da feira da Adroana, Relógio ou Carcavelos. À data ainda usava relógio de pulso, logo me caiu a vista numa bancada de relógios. O chinês do estaminé, pressentindo dinheiro fresco deste turista ocidental, vai de sacar de duas malas refundidas debaixo da bancada e “tcharam”: Rolex, Tissot, Adidas, Omega, etc, tudo da mais requintada contrafação chinesa. Quem visse aquela “mercadoria” numa loja do Colombo, seria certamente enganado sem pestanejar. Já vos aconteceu estarem a comprar algo que sabem que é treta mas é barato, tem bom aspeto, enche o olho, está aqui à mão, enfim, o relógio que tinha comprado dias antes na estação de comboios em Huizhou atrasava-se uma hora a cada duas. Decisão tomada. Vão três. Nem é preciso embrulhar. Três dias depois em Lisboa ainda pensei que o pessoal da alfândega embirrasse comigo por trazer relógios. Afinal mandaram-me para revista porque era comum a compra de portáteis baratos, que estavam sujeitos a direitos alfandegários. O meu foi verificado, viram os selos portugueses e passei sem problema.

Após tão exclusiva mercadoria comprada, decidi voltar ao Master Club, pegar na trouxa e zarpar para Hong-Kong. Taxi, estação de comboios de Shenzhen, fronteira. Um controlo muito rigoroso de passaporte, para sair da China Continental. Verificação de toda a documentação possível e imaginária. Já do lado de Hong-Kong, foi o expoente máximo da análise à lupa. Devia ter cara de quem era portador do vírus da gripe aviária A, B, C, D, e demais letras. Examinado ao pormenor por uma equipa altamente apetrechada, batas, máscaras, análise na hora ao pingo no nariz, globos oculares, apalpar o pescoço, etc. Lá me deram luz verde para entrar na China “Ocidental”. Senti-me um privilegiado face à grande maioria dos chineses do outro lado que não tinham a possibilidade de sair. Um país, dois sistemas.

Ao sair, lembrei-me do que me veio à cabeça quando cheguei alguns dias antes, rodeado de chineses a convidarem-me para transportar as malas, a oferecerem táxis, a olharem curiosos, a dizerem não sei o quê, a tentarem fazer dinheiro com qualquer coisa. Acho que senti algum medo, alguma apreensão. “Onde me vim meter”, pensei naquele momento enquanto arrastava a mala da roupa e a pasta do computador.       

Comboio para o centro de Hong Kong e procurar sítio para pernoitar. Tinha registado dois ou três hotéis em Hong-Kong, dentro do meu orçamento previsto. À saída da estação meti-me num táxi e rumei a um hotel com um nome “very british do qual não me lembro o nome”. Caduco, gasto, snob, colonial, mas suficientemente bom para me estender, ver e ouvir televisão em …português!!! Yesssssssss. Tinham inaugurado as transmissões da RTP internacional para a Ásia havia poucos dias. O Toy a cantar não me lembro bem o quê, a Serenella Andrade com uma parvoíce qualquer, enfim, foi música e conversa do melhor para os meus ouvidos. Bolas, estava mesmo a precisar dum banho de portugalidade.

Ás três a tarde, a pensar em sair para beber um café num “Starbucks”, a ver a RTP Internacional, deitado na cama do “Very British hotel que não me lembro o nome”, snob, c a d u c o, c  o  l  o  n  i  a  l, … 

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15º Capítulo - terça-feira, 22 de março de 2005

 


15º Capítulo 

Guangzhou e Shenzhen, terça-feira, 22 de março de 2005

Deixei o Hotel Guangdong e a cidade de Guangzhou, já com estadia marcada no Master Club em Shenzhen, a minha primeira guarida na China. 

Outro motivo da minha ida à China prendia-se com o facto de decorrer uma outra feira ligada ao mobiliário/decoração em Shenzhen, embora de menor importância.

Depois do checkout pedi que me chamassem um táxi e rumei à estação de comboios de Guangzhou. Cerca de 120 km distam entre as duas cidades e não justificava viagem de avião. O serviço de comboios na China é, de facto, bastante bom. Pontual, asseado, organizado, tudo apesar de estar permanentemente lotado. Desta não me tramam. Procurei o lugar que constava no bilhete e não me sentei “à sorte”, sujeito à cobiça do “dono” do lugar. Mais uma vez a paisagem aproximou-se no meu imaginário da China. Ao passar por uma zona mais rural, as construções assemelhavam-se, nalguns casos, aos conhecidos pagodes típicos daquele país, bem como os campos de arroz com montanhas pontiagudas em pano de fundo, ora recortada por carreiros para uso de peões e animais ou por árvores recortando cursos de água. Viagem excelente. Chegado à estação de comboios, a ravienga do costume aos taxistas mais manhosos, seguindo a máxima de nunca entrar em nenhum que se ofereça e, novamente, ei-lo à porta do Master Club. À entrada, a mesma recepção das recepcionistas perfiladas, do bagageiro e demais assistentes. “Xim Pam Pum” e mais uma ladainha que quase me tinha esquecido, tal a intensidade da vivência recente alguns quilómetros mais a norte nos últimos dias. De novo o cheiro típico do Master Club. Enfim, em casa, de novo.

Neste regresso a Shenzhen e a algo já conhecido e sem saber bem porquê, mas fez-me pensar na aldeia de Fontanelas e na condução do velho trator “International” lá de casa, de seu nome “Pacheco”, já que a pessoa a quem o meu pai o comprou chamava-se Pacheco. Desde os meus dez anos que conduzia aquela “máquina infernal” que atingia os loucos 25 km/hora, permitindo-me, às escondidas, uns “derrapanços” de rally ao jeito do Markku Allén ou do Ari Vatanen, sem a mínima noção de que poderia correr mal. Nas viagens para o Camejo, uma propriedade a alguns quilómetros de distância, costumava ir pelo pinhal. No final desse pinhal existia uma curva a 90’ com bastante areia, local privilegiado para ensaiar essa curva em “derrapanço” a 25km/hora. Por sorte ou por falta de velocidade, nunca deu para o torto.

Talvez o regresso a Shenzhen, o afastamento de casa de dez dias e as saudades me fizessem pensar em situações vividas intensamente na minha meninice e adolescência.

Depois de instalado, rua. Ainda tentei ver televisão. Podia assistir a mais de trinta canais em chinês e um em Inglês, a CNN (salvo erro). A princípio custou a entrar o inglês sem legendas, mas no final a “necessidade aguça o engenho” e comecei a entrar no ritmo e a perceber tudo normalmente. Uns dias mais tarde em Hong-Kong já tive o privilégio de ver a RTP Internacional, que começara a ser transmitida para a Ásia no início do mês.

Mas a China é rua, é gente, é movimento, lojas, confusão, trânsito e … ópera revolucionária. No centro de Shenzhen, junto a um hipermercado grossista de produtos para cabeleireiros, onde também se vendem relógios contrafeitos e tudo o que é contrafeito, eis que, num palco todo engalanado, tive oportunidade de assistir a uma ópera revolucionária chinesa de rua, bem à velha maneira da China Maoista, numa epopeia onde militares e camponeses caminham de mãos dadas contra o despotismo capitalista. Ironias do destino, nunca a China esteve tão capitalista, tão materialista como agora, embora a mentalidade capitalista não seja externa, mas sim interna, fomentado pelo país dos dois sistemas. Perto da noite, recordei-me de um sítio junto à estação de comboios onde tomei o pequeno-almoço quando, alguns dias atrás, tinha ido a Huizhou à fábrica de candeeiros Tiffany. Um pequeno restaurante fast-food chinês que tinha café menos água choca com máquina. Desta vez poderia fiscalizar a operação e apontando para a chávena, não arredando pé do balcão, mostrando com gestos precisos a melhor forma de tirar uma bica à maneira, cheirosa, daquelas que preenchem todos os cantinhos da memória olfactiva e nos transportam para momentos de puro deleite repleto de cafeína. Em frente. Tudo nos trinques.

Pensei em tudo.

Expliquei uma parte do que pensei.

Ele ouviu parte do que eu disse.

Entendeu parte do ouviu.

Do que entendeu, esqueceu-se de algo.

Do que se lembrou, executou uma parte.

A parte que executou não o fez da melhor forma

“et voilá”.

Balde de água choca. Toma lá que já almoçaste.

Cama.

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14º Capítulo - Segunda-feira, 21 de março de 2005

 


14º Capítulo 

 

Guangzhou, Segunda-feira, 21 de março de 2005

 

Nunca vi tantos chineses juntos. O que mais impressiona é a quantidade de pessoas por todo o lado. Fiquei farto da Feira e da quantidade de gente que por lá andava.

Decidi que já chegava. Tirei o dia para descansar. De manhã levantei-me às 9 horas e fui à pressa ao pequeno-almoço, já no “red line” do horário do restaurante. Esta modernice dos horários só é válida para inglês ver. Pelo que tenho observado, come-se a toda a hora, em qualquer lado, de qualquer maneira e de tudo. É típico ver uma pessoa no passeio, sentada nos calcanhares com uma tigela e dois pauzinhos, tranquilamente, a ter a sua refeição. Todas as horas são boas para comer.

Quando cheguei a Shenzen, uma semana atrás, fui confortar o estômago numa tasca escolhida por ter fotos dos pratos servidos. Para quem não se consegue fazer entender nem consegue entender, nada melhor do que poder apontar para algo que se assemelha a uma boa refeição. Assim eu esperava, já que escolhi um prato com uma perna e coxa de frango, empoleirado em cima de uma torre de arroz e legumes verdinhos e com excelente aspecto. Tudo “nos trinques”. O que falhou foi a cozedura do frango. Era frango praticamente cru, cozido ligeiramente no vapor. Valeu o arroz e os legumes.

Após o pequeno-almoço fui para a rua meter o nariz em tudo. Tomei alguma consciência do que é a China andando na rua, nas lojas, nos mercados, nos bairros, nos pátios, etc. Os chineses, por questões de espaço, têm pouca privacidade, pelo que é normal irmos numa rua secundária, dentro de um bairro e desviarmo-nos para um canteiro porque a família que habita aquela porta tem mesa montada na rua. Os espaços privados das habitações são reduzidos, pelo que qualquer espaço disponível tem, imediatamente, utilidade que não o fim para o qual foi concebido. Nesse mesmo dia deparei-me com uma pessoa a tomar banho no passeio, onde um pequeno alguidar de plástico servia de banheira improvisada. Apesar de ter dado corda aos sapatos, ainda tive direito a champô aos salpicos. A China no seu melhor, na sua essência. Tive pena de não fotografar parte dos sítios onde estive, só que o tamanho atijolado da máquina fotográfica que à data tinha, inibia-me de a transportar diariamente para todo o lado. Segui a corrente humana e dei comigo numa zona de lojas e mercado de rua. Ainda hoje estou para descobrir que molhos eram aqueles que via com regularidade, em cestos, e caixas de cartão, nessas ruas por onde passei. Suspeito que fosse fogo de artifício. Talvez se avizinhasse uma época festiva, propícia a que as pessoas comprassem daquilo aos molhos.

Estive seguramente 10 minutos a ver um cozinheiro de patos. O trabalho deste senhor consistia em tirar os patos do forno e cortá-los em pedaços com tamanho adequado para ser comido com os pauzinhos chineses, dentro de pequenas cuvetes de plástico. A sua destreza deixou-me deslumbrado e pregado á montra. Às tantas já o chinês estava numa de exibição, com o cutelo a subir e descer de forma artística, tipo circo para português ver. Um pouco mais á frente, não consegui entrar no mercado da carne crua. Dramático para mim. Depois de deixar de fumar, fiquei com o olfacto muito apurado e tenho uma maior sensibilidade para os cheiros, tipo cão de caça. O cheiro que vinha daquela zona ajudou a que, actualmente, quase não cozinhe carne e me repugne o seu cheiro. Aí perto, apesar da gripe aviaria, viam-se centenas de gaiolas com bicharada de penas.

Vi uma lojinha no mercado cuja especialidade era a venda de pauzinhos chineses. Tinha-os de toda a qualidade e feitio, de várias cores, de vários tamanhos e materiais. Antevendo um gosto futuro pela coisa, comprei cerca de 20 caixas com 10 conjuntos cada para oferta e consumo próprio. Ainda hoje utilizo diariamente esses pauzinhos que trouxe da China em março de 2005.

Depois de um dia inteiro a deambular por Guangzhou procurei, mais uma vez, um sítio para beber um café em condições, já que o café da véspera (ou algo parecido) não me preencheu a lacuna de cafeína, em défice havia já alguns dias. Apesar da máquina adequada, do tamanho da chávena (que não era balde), do cenário, não tinha nada a ver com um café como devia ser.

Hoje é que vai ser, pensei eu. Não vou falhar. A táctica: Ir a sítios onde abunda a clientela ocidental, consumidora tradicional de café, onde existe um serviço mais para ocidentais do que para o cliente local. O alvo: O bar de Hotéis 5* e afins. Siga. Entrei num hotel central com pompa e circunstância. Dois “generais” à porta, vénia, chapéu na mão e eu à procura do bar. Nem foi preciso procurá-lo muito, já que era bem visível do lobby. Primeira dificuldade. O bar não tem balcão, só serviço de mesas. Não me permite fiscalizar a operação de tiragem do café. Vou caprichar no pedido. Sentei-me e quase de imediato apareceu o empregado. Pedi-lhe o EXPRESSO COFFEE, NO MILK, SMALL CUP, NO SUGAR, SINGLE, … THANK YOU.

35 RMB (3,5€), normal para o sítio. Eficiente no serviço, normal para o sítio. Triplo abatanado, normal para o sítio. Será que estes gajos não têm mesmo Starbucks numa cidade deste tamanho?

Cama e

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quinta-feira, 28 de março de 2024

13º Capítulo - Domingo, 20 de março de 2005

13º Capítulo 

Guangzhou, Domingo, 20 de março de 2005

Curioso. É Domingo e Guangzhou tem exactamente o mesmo turbilhão de pessoas que qualquer outro dia da semana. Gente, gente, gente até mais não. Nos cruzamentos principais da cidade junto aos semáforos e às passadeiras de peões, existe uma figura que eu nunca vi em qualquer outro lugar. É meio polícia, meio assistente de tráfego humano, exclusivo para passadeiras. Na China assistimos a “enxames” de gente a atravessá-las quando o sinal verde abre para os peões. No que toca a atravessar a rua, os chineses são um bocado indisciplinados pelo que existe a necessidade de controlar a “manada” no seu ímpeto. A função destes polícias, que têm uma vara branca e vermelha tipo bengala antiga do ceguinho com cerca de dois metros, é conter a corrente humana quando o sinal está vermelho para os peões e abri-la quando é seguro faze-lo. Tipo cancela da passagem de nível.

Na China as bicicletas são uma constante. À semelhança do automóvel que origina um trânsito caótico, a bicicleta é também uma forma popular de vencer distâncias. São aos milhões por todo o lado, quer seja na estrada, nas passadeiras ou no passeio. Existe uma nova versão (em 2005 eram total novidade). Têm motor eléctrico auxiliar e andam também nos passeios, a uma velocidade superior às convencionais e pregaram-me um “cagaço” tremendo. Indo eu a pé muito descansado no passeio, na hora de mudar de direcção avancei para onde pretendia ir sem olhar para o “retrovisor” nem assinalar essa mudança de direção. Na China e nos passeios, os peões têm mesmo que olhar antes de virarem. Lá vinha a bicicleta com motor eléctrico auxiliar a alta velocidade e ainda roçou na pasta que eu transportava, mas sem consequências de maior. E ainda por cima ralhou. Fui, de novo, para o recinto da feira. Fiquei a mal com os taxistas pelo sucedido na véspera, pelo que aproveitei o metro para lá chegar. Bom e barato. Cheguei a horas decentes e entrei numa outra área que não tinha tido oportunidade de visitar no dia anterior. Desta não fui barrado pelos indígenas perfilados à porta, fardados e com cara de mau. Mais uma vez deparei-me com móveis e sofás fabricados na China e vendidos em Portugal por empresas de renome e a “preços da uva mijona”. Espectáculo. Mais do mesmo. Montes de catálogos, preços, condições de aquisição, condições de transporte, etc, etc, etc.

Ao fechar da porta a mesma situação dos taxistas. Um manguito mental a tais personagens. Metro até ao centro, junto ao hotel Guangdong. 

A ida ao cabeleireiro é viciante. A minha droga. Até dá para adormecer, tipo bebé, na cadeira do salão. Se forem à China e virem dois cilindros na vertical, com barras às cores em espiral, um de cada lado da porta de entrada, estarão em frente a um dos sítios mais espectaculares que poderão visitar. Sentados na cadeira e serem massajados até às orelhas, é obra. Até arrepia. Recomposto, é hora de jantar. Optei pelos restaurantes com peixe vivo à porta. O peixe cozido no vapor, as lulas grelhadas, as vieras no vapor, os legumes no “Wok”, divinal. Tudo espectacular, quase tudo, porque café é desconhecido. Ainda tentei, mas travei a tempo, antevendo um galão chinês “Caffée”. Rua. Caminhar precisa-se. Andar e ver onde há café. Tinham-me dito que havia “Starbucks” na China pelo que me resolvi a descobrir um destes antros da cafeína em Guangzhou. Dirigi-me para as ruas centrais da cidade, onde tradicionalmente se podem encontrar este tipo de lojas. Não encontrei nenhum “Starbucks” mas encontrei uma “cafetaria” na zona da mesquita, frequentado por muçulmanos africanos. É desta. Vi chávenas nas mesas com bom aspecto. Dirigi-me ao balcão e bingo. Lá estava a máquina expresso, com chávenas em cima, prontinha para soprar água quente canalizada e filtrada através das partículas castanhas do café prontas a cair dentro de um recipiente redondo previamente aquecido. Brutal. Não falha. Desta vai mesmo. Era impossível não haver um café expresso em Guangzhou. Cá está, é para hoje, chávena pequena, meio cheio ou meio vazio tanto faz, com creme castanho, a fumegar, cheiroso, quentinho, aveludado, odorífero, perfumado. UÁU!!!  Eureka!!! Parecia, de facto, café. E era, quer dizer, era quase. Era um parente afastado do café. Talvez um primo em sétimo grau, aparentado. Não sei se era da moagem, da qualidade da mistela, da qualidade da água ou simplesmente da habilidade do funcionário. Amargava que se fartava. Seria chicória chinesa? Ou rama de coco torrada? Na volta era soja transformada em café. Esses chineses copiam tudo, pá!!! Brrrrrrrrrrrrrrrrrr! Nhac! Até arrepiou. Ainda não foi desta que consegui um simples café expresso.

 

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quarta-feira, 27 de março de 2024

12º Capítulo - Sábado, 19 de março de 2005


12º Capítulo 

Guangzhou, Sábado, 19 de março de 2005

Decorria a feira “China International Furniture Fair Guangzhou” que foi, de resto, o principal motivo da minha viagem à China. 

Fui de manhã cedo para a feira, de táxi, após o pequeno-almoço farto no Guangdong Hotel.

Mais uma vez recorri a um print da net para indicar ao taxista o destino pretendido.

Cheguei bem antes da hora prevista de abertura, mas como estava com uma brutal  expetativa, assim que me despachei do hotel fiz questão de me deslocar de imediato para o recinto da feira, a escassos quilómetros do centro de Guangzhou e local do hotel. Aquela hora apenas entravam as pessoas credenciadas, como funcionários e expositores das empresas presentes.

Na China as demonstrações de força são frequentes. Tudo é feito com um autoritarismo exacerbado. Talvez pelo complexo de estatura, pelo regime totalitário das últimas décadas ou até pela sua forma de ser, os chineses não perdem uma oportunidade de demonstrar que não brincam. No Ocidente é normal a palavra ser suficiente para desmotivar alguém que pretende ir para além do que pode ou deve, mas os chineses fazem questão de demonstrar a sua firmeza e autoridade quando o mesmo se passa em relação, por exemplo, a uma simples entrada antes da hora no recinto da feira. “Maria vai com as outras” e o “je”, não se apercebendo do facto de apenas estar aberto o acesso a expositores e funcionários, entrava no meio da maralha para entrar no recinto. Entrada barrada por três indígenas perfilados com cara de mau, um deles com a palma da mão encostada ao peito deste humilde servidor da causa das idas a feiras de mobiliário no sul da China. Quase como bater numa parede e estancar. Apanhei um cagaço. Ainda me lembrei que talvez não tivesse cumprido todas as regras chinesas básicas e merecesse xelindró sem direito a julgamento, aplicado de imediato por guardas da feira de Guangzhou que ali estavam para punir ocidentais prevaricadores da lei e da ordem reinantes. Porra!!! Fiquei a bater mal.

Passado o cagaço e meia hora, lá entrei no recinto e comecei a visita pela vasta área de exposição. Brutal!!! Um mundo. Grande, com muito móvel e barato. Barato. Não me admiro que em Portugal a indústria esteja em recessão. A China produz tudo muito mais barato e com rapidez. Não conseguimos competir de igual para igual com países de mão-de-obra barata, sem regalias, sem horário de trabalho, sem dias de férias, sem sindicatos, em suma, com tudo o que a Ocidente não é possível (e bem). Cansei-me na feira. Um dia inteiro a ver, pedir preços, fotografar, analisar, etc.

Saí da feira pouco antes desta fechar e nem metade tinha visitado. Cansado. Na volta para o hotel, os taxistas vendo os ocidentais aos molhos e desorientados, cobravam à viagem, não ao taxímetro, com um preço fixo (o dobro ou triplo do custo da mesma viagem em sentido inverso) para levar de volta a manada tresmalhada aos hotéis. Pwt@ que os pariu. Um manguito.

Assisti a uma zanga tremenda de um chinês envergonhado com este comportamento, entrando em acesa discussão com um grupo de taxistas. No entender dele era completamento vergonhoso aproveitarem-se das pessoas e não abonava nada na nova imagem da China moderna. Algo como a anedota que fala de uma companhia de aviação que cobrava apenas um dólar para levantar voo. O pior é que omitia que para os manter a voar cobrava 5.000 dólares.

Entrei no moderno metro à toa, sem saber como pagar ou entrar. Lá mostrei o cartão do hotel a uma alma caridosa bem fardada que, em inglês mal amanhado, me disse que tinha que sair aqui, ir por ali, descer acolá, etc e tal. Pois, Pois. Fiquei na mesma.

Decidido a sair numa das estações mais centrais e aí apanhar um táxi para finalmente me levar ao meu destino, saio e eis-me numa rua familiar, com árvores nos passeios e um prédio cor-de-rosa bem alto, mesmo à minha frente. Estava a 200 metros do Hotel Guangdong, o meu destino. Ele há dias de sorte.

Após um duche reconfortante vou à procura de uma tasca onde possa recompor o estômago da comida da treta ingerida nos restaurantes fast-food do recinto da feira. Maravilha. Aventurei-me um pouco mais e quando dei por mim estava numa zona de comida de rua. Quando vejo, actualmente, os programas sobre culinária de rua como o Anthony Bourdain, lembro-me de uma rua de Guangzhou onde andei a picar espetadas grelhadas, vegetais assados e mais umas quantas coisas que não consegui perceber o que era, mas que foi dos principais pitéus que me passaram pela estreita goela. Após o merecido repasto numa movimentada rua de Guangzhou, eis-me à procura dum mendigado e escanzelado cafezito com ou sem espuma, desde que se assemelhe a um cheiroso e reconfortante café expresso.

Mais uma vez vi nessa zona muitos africanos muçulmanos, com os seus trajes característicos.  Provavelmente a mesquita seria perto. Esta comunidade é consumidora de chá e café, logo seria normal existir nas redondezas algum estabelecimento com produtos específicos desta comunidade. Népia. Nada. Uma semana sem beber um café em condições já dá para desesperar. Quase a entrar em síndrome de abstinência de cafeína, possesso e irritadiço, decidi regressar ao hotel por um outro trajeto , onde  reparei num centro comercial pejado de telemóveis. Milhares e milhares. Entrei e eis que, no meio daquela confusão de telemóveis, reparo numa máquina de café, semelhante às que se vêm hoje um pouco por todo o lado, para serviço aos clientes. Fiz-me interessado nos telemóveis a piscar o olho ao café. É desta é que é. Convidei o senhor que me atendeu a oferecer-me um café. Espectáculo. Parece que adivinhou. Ainda não tinha acabado bem a frase já este me estendia um copo a fumegar. Estes chineses são do caraças!!! Ninguém os bate em termos de serviço, de dedicação, de empenho. Para eles o trabalho é um direito e não um dever. O homem estava ali para fazer com que ocidentais que procuram café fossem atendidos da melhor forma possível, sem margem para dívidas. Pois, a fumegar, sim. O chá, de jasmim, estava espectacular, talvez um pouco quente.

Com o “rabo entre as pernas” lá fui de regresso ao hotel beber o cariocazito da ordem, desta vez tirado em chávena grande, já que o funcionário do bar resolveu que eu tinha cara de quem bebia muita quantidade.

Acho que quando me estendi na cama já estava a dormir em pé.

 

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segunda-feira, 25 de março de 2024

11º Capítulo - Sexta-feira, 18 de março de 2005 (2ª parte)






11º Capítulo 

Guangzhou, Sexta-feira, 18 de março de 2005 (2ª parte)

Guangzhou convida a andar a pé pelas ruas apesar de ser uma cidade com os passeios completamente cheios de gente. Para qualquer lado que siga, permanente e constantemente a cidade fervilha de pessoas. Os mercados são, na minha opinião, o centro nevrálgico de qualquer local a visitar. É nos mercados que tomamos realmente conhecimento e noção da realidade local. Na maior parte destes mercados conseguimos descortinar a verdadeira essência da vivência dos locais, sem máscaras nem cenários para turista.  

Os mercados de vegetais são dos mais completos que alguma vez vi. É impressionante a forma como os preparam, chegando a ser duma meticulosidade impressionante a forma como embalam e organizam os verdejantes molhos. Uma variadíssima gama de vegetais compõe a dieta chinesa no dia-a-dia duma população perita em confecionar legumes de toda a maneira e feitio, com especial ênfase para os caldos e cozidos ao vapor nas panelas de bambu. Fiquei tão sensibilizado com esta particular forma de cozinhar que, desde 2005, adotei a cozinha a vapor em panela de bambu dentro dum recipiente com água a ferver. Deixei, praticamente, de cozinhar em água fervente. Também numa simples panela comum com dois dedos de água é possível cozinhar a vapor com um utensílio que abre tipo pétala, cozendo os alimentos pelo vapor e de forma menos intrusiva, mantendo a sua textura e formato.

No que toca a peixe e mariscos, estes são comercializados vivos, mantidos em tanques oxigenados por centenas de metros de tubo ligados a pequenos compressores que não se cansam de deitar bolhinhas para manter a água em boas condições e fornecer oxigénio aos vivíssimos peixes e mariscos residentes nestes numerosos aquários. Que me tenha apercebido, não existem peixes mortos para venda, como numa qualquer peixaria por esse mundo fora. Na China fazem questão, nem sei bem o porque desta exigência, de manter os peixes vivos até serem mortos e cozinhados.

Após ter feito a entrada no hotel era imperioso fazer um reconhecimento à zona envolvente.

Guangzhou é a capital da província de Guangdong, ou Cantão, no sul da China. É uma cidade com cerca de 15 milhões de habitantes, atualmente. Sendo uma das cidades com elevado índice de crescimento, necessita de um constante fluxo de mão-de-obra oriundo de zonas mais desfavorecidas, como as províncias do interior. Está a rebentar pelas costuras. Quando se realiza a tradicional Canton Fair, uma das feiras internacionais mais conhecidas em todo o mundo, os hotéis esgotam nessa altura do ano (normalmente Abril). As reservas são feitas com um ano de antecedência e os preços são proibitivos, tal o afluxo de estrangeiros e nacionais à Canton Fair.

Já estava quase curado da dependência “barbeiro”, mas recaí, só que em vez de cortar, optei pela lavagem e massagem. Espetacular!!!

Estes dias muito movimentados cansam. Após o jantar numa tasca onde pedi algo pela foto da ementa, tive direito a um arrozito pintalgado com vegetais e mais uns acepipes saborosos. Barriga cheia e rua, à procura de café. No Mc Donalds levo com a água choca. No KFC idem, idem. Será que estes gajos não têm Starbucks? Bem que procurei, mas nada.

Habituei-me a andar depois das refeições, por duas razões: Conhecer o local e ajudar e “desmoer” as excelentes refeições que tenho conseguido encontrar nesta China com tremendos contrastes entre o velho e o novo. É comum encontrar um bairro operário, tipo cápsula do tempo Mao Tsé-Tung, no meio de prédios com 30 ou 40 andares, supernovos no topo da modernidade. Estes bairros, com construções rudimentares e humildes, estão condenados ao desaparecimento para dar lugar à cosmopolita China capitalista e endinheirada. Estes bairros de humildes operários, onde algumas pessoas ainda se lavam na rua em alguidares  de plástico, darão lugar a centros comerciais pejados de produtos e serviços apelativos para a nova faixa de jovens consumidores inebriados pelas fabricadas modas made in Tik-Tok e afins. 15 milhões de almas a sobreviverem amontoados num espaço completamente sobrelotado.  

Regressei ao hotel e optei por beber um expresso à maneira do funcionário do bar. Já estou por tudo. O que vier, morre. Coração ao largo. Mas este hotel é mesmo bom. Para além do barman me entender, percebeu também o que eu queria e, dentro das possibilidades, lá bebi um “cariocazito” antes de regressar ao quarto.

Mas ainda não foi desta que repus os meus níveis cafeínicos. Café precisa-se.

Foi deitar e …

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